O processo de criação das músicas do Tributo ao Ribeirão não obedeceu a nenhum tipo de planejamento específico. A estratégia utilizada foi a mais simples possível: observar e tentar captar as influências da nossa herança cultural ainda presentes no cotidiano da comunidade e descrevê-las com fidelidade e paixão. Porém, como confessei anteriormente, a primeira composição nasceu “meio que por acaso”. A letra de “Amor eterno” não foi concebida originalmente para esse fim. E, por esse motivo, a poesia sofreu várias alterações até chegar ao formato atual. Apesar de manter a essência – manifestar o orgulho e a gratidão por ser um “filho da terra” – o enfoque inicial contemplava outros aspectos, como o prazer de passear de baleeira pelas águas da baía sul, numa óbvia homenagem ao meu pai. Mas o fato de começarmos a compor de forma constante nos permitiu abordar os temas considerados mais pertinentes, separadamente. Exemplos disso são “A lua da ilha”, “Borboleta”, “Simplório”, e outras produzidas na mesma época. Cada uma delas trata de um determinado assunto: a magia do luar em Floripa, a preocupação com as futuras gerações e a simplicidade do pescador artesanal. E, de acordo com essa linha de pensamento, seria, literalmente, imperdoável não fazer uma referência à questão da religiosidade local. Afinal, qual “manezinho” nunca acompanhou – ou pelo menos viu – uma procissão do Divino, de Nosso Senhor dos Passos ou da Padroeira da sua paróquia?
Notoriamente de origem luso-açoriana, esse tipo de manifestação cultural era, há alguns anos atrás, talvez o maior evento social de cada comunidade. Portanto, pelo grande significado dessas tradições e pela minha própria formação, “Amor eterno” inevitavelmente adota um discurso de tendência católica/cristã. Essa particularidade fica evidente logo nos primeiros versos – “foi benção que Deus me deu...” – e ao longo da poesia – “andar a pé acompanhando / a procissão da Padroeira” ou “um menino é soberano / divina é a bandeira”. No entanto, seria uma omissão gravíssima não estar atento ao sutil sincretismo que coexiste harmoniosamente com as leis da “Santa Sé”. Assim, quando cito “o santo e o profano / a fé de uma benzedeira” me refiro justamente à convivência pacífica dessas esferas supostamente antagônicas. A crença na medicina popular, no conhecimento transmitido por índios e negros, na força das rezas e simpatias não suprime a fé. Pelo contrário, a complementa. E vice versa. Além disso, o elemento “pagão” é facilmente perceptível no transcorrer dessas festividades, sempre animadas com muita música e fartura de carnes e cerveja. Em resumo, são festas de cunho sacro, mas como no Brasil tudo acaba em samba...
Entremeando o mote, tentamos enaltecer aquilo que consideramos o patrimônio mais importante do Ribeirão: a simplicidade e a sabedoria da nossa gente – “aos poucos te descobri / criado entre as canoas / observando aprendi / o valor da alma ilhoa”. E resgatar alguns dos ícones mais representativos em nossa memória: “a beleza desse mar / em tuas praias sem ninguém” ou “no casario açoriano / a Banda do Zé Pereira”. Finalmente, se “no romper de minha aurora” agradeço a benção, explicito meu desejo de – quando for o momento! – “repousar no ventre materno” da terra que me gerou. Porém, caros amigos, antes que isso aconteça, espero que possamos nos encontrar em breve para comemorar algum dia santo. Então rezaremos um pouco, depois podemos comer uma chuleta, tomar umas e, possivelmente, ouvir um som do Regi...
Kalunga